sexta-feira, 13 de novembro de 2009


O colecionador de cenas
Colecionava cenas. Não fazia questão de que elas perdurassem ou se repetissem durante a sua vida. A simples lembrança delas era suficiente para que o deleite invadisse os seus nervos. Tinha muitas. Uma das preferidas era a jovem loira, nua, sentada sobre seu corpo a lhe estapear as faces. Havia inocência demais naqueles olhos azuis que observavam o rosto que ela cobria do mais estranho prazer, inocência que jamais voltaria a ser a mesma.

Lembrava também da outra menina que, só para satisfazê-lo, de surpresa roubara as luvas negras de pelica da avó, vestira a calça de couro mais apertada – é a moda, disse para a mãe – e até mesmo conseguira um quepe do exército para fingir autoridade. Ela compusera um personagem dos mais vis apenas para fazê-lo ter prazer. E sob aquele quepe, a segundos havia uma cabeça supostamente pura. Como saber?

Na outra ocasião, dentre as que guardava com carinho, teve que torcer muito as costas pois estava preso por correntes à cabeceira da cama. E o que viu foi um chicote pendendo de uma mão e de um braço muito brancos. Mas a lembrança que ele mais guarda dessa ocasião não é a imagem, mas um som que consistia das palavras “cala a boca” após ele ter dado o primeiro e único gemido daquela noite. A espontaneidade da frase, inesperada, quase uma sonata improvisada, viera da boca que há poucos dias lhe pedira um chocolate no cinema.

Não, não colecionava cenas. Colecionava inocências.


Na ausência do desejo
Permita que eu desapareça na ausência de seu desejo. Como se minha existência dependesse dele, seu querer daria sentido à minha carne. Eu não seria um fantasma, eu não seria vento, eu não seria coisa alguma nas horas em que suas vontades mais lúbricas estivessem distraídas. Mas nos momentos em que elas estivessem atentas, eu me materializaria pronto pra você e só pra você. Somente a eterna danação de um desejo consistente iria dar a mim o pleno existir. E que, nesse pleno existir, eu pudesse dar a você não a tristeza da satisfação rápida e frustrante, mas o prazer de algo que aumenta a cada segundo e não tem pressa de se consumir. Que eu seja assim, uma vítima de seus caprichos sejam eles os mais doces, sejam eles os mais perversos. Não importa.

De outra forma, que eu seja evanescente como as sombras dos últimos segundos do entardecer, que aos poucos se misturam umas às outras e finalmente se tornam aquilo que costumeiramente chamamos de noite.


De carne e outros materiais

Uma mulher, neste momento, secretamente, crava poesia em minha carne. E a poesia, feita não da emocionalidade, que turva a vista, mas da matéria pulsante que move a roda do mundo, enche a minha vida agora, como a palavra penetra o papel. Essa mulher eu aguardo. Não sei se vai chegar. Porém a ausência de ansiedade, faz de mim não um platônico ou um idealizador. Sou, pela graça deste instante, um ser cheio de antecipações que podem concretizar-se ou não, indiferentemente, pois o que importa é o presente. Apenas isso. E não preciso ser mais nada. Se eu fosse uma boca, salivaria. Porém, sou um homem e, como tal, a receberei.

Um comentário:

  1. Lindo escrito este.

    Parabéns, não sei se ele é de sua autoria, mais seja de quem for, merece um elogio.

    Tomei a liberdade de segui-la, ok? Qualquer inconveniência, é so me avisar.

    Beijos carinhosos,

    ÍsisdoJun

    ResponderExcluir